quinta-feira, 3 de julho de 2014

A sorte de cá estar*

«Há o esplendor. Esconde-se sempre ao canto do olho e só existe durante um segundo - mas está lá, como paisagem por que passamos, como luz, como lembrança diminuta de que nem tudo é como seria de prever: que há excepções à normalidade e que são anormalmente belas, sem deixarem de ser banais. Há o fulgor na cinza, se soubermos ler bem a cinza, como fogo que já foi. Durante um momento foi azul e laranja; agora é cinzento e preto. A mudança de cor só nos diz que o fogo aconteceu e cumpriu.
Nas nossas vidas procuramos sempre as excepções e as explosões de cores e calores. Encaramos o branco-cinzento da continuidade - que é a maior alegria, a de não muda ou morrer - como se fosse um tédio, uma coisa a que tivéssemos direito. Nas margens dos nossos campos de visão, brilham árvores e ardem namoros. Estamos cercados pela tristeza e infiltrados pelo desespero mas é só um defeito de perspectiva que nos leva a pensar que somos nós, cada um, o centro do mundo. Não somos. Não podemos ser. Não poderíamos ser.
Ganhamos muito em pensarmo-nos mais como espectadores do que como protagonistas. *A sorte de cá estar e de poder observar é maior do que a nossa morte. É a prova de que estamos vivos. E estar vivo nunca é coisa que dure muito tempo, mesmo descontando os tempos em que os sofrimentos pareciam eternidades.
Cada dia é a nossa vida. O esplendor está sempre escondido e nunca se deixa encontrar. Completamente. Ou parcialmente. Basta saber que está lá.»

miguel esteves cardoso - amores e saudades de um português arreliado

» créditos imagem | blue mountain thyme