«o mundo parou. e tivemos de descobrir um nova forma de vida, em que temos
de olhar, ouvir e falar para nós próprios. confinados 24 horas às nossas casas,
devia ser o momento de parar e viver um pouco mais o "eu". mas,
engraçado, sinto que continuamos todos a fugir dessa coisa de ficar sozinho.
multiplicam-se as calls de grupo, os directos, os mil memes que me enchem a
memória do telefone, os webminars sobre tudo e mais alguma coisa, os conselhos
dos psicólogos para não deprimirmos sozinhos, as mil sugestão de livros, jornais
e filmes para vermos... que cansaço!
é que afinal o ruído continua. só que agora não é na rua - é nas nossas
mãos e olhos. não sei se é pior.
dou por mim a ter de tirar o som do telefone, a apagar as notificações das
mil redes, e a lutar para não ser sempre o cromo que não instalou a última
trend das apps de festas online. mas qual é o problema? qual é esta necessidade
extrema de atenção, proximidade, presença, seja lá o que for que procuram? é
bom estarmos sozinhos. é bom estarmos confinados com aqueles que estão aqui, à
distância do abraço. claro que podemos falar com todos, saber de todos. ter uma
palavra de carinho, de preocupação. mas não precisamos, de repente, de sermos o
melhor amigo-motivador-animador-alma gémea de todo o mundo.
por isso, respirem.
abram a janela à noite e fiquem parados, apenas a desfrutar o silêncio.
ponham aquela música em repeat durante uma hora, abram um vinho, e deixem-se
estar ali, na beira da varanda, sem mais qualquer distração. num loop lento, a
acalmar o cérebro, a baixar a adrenalina. este mundo louco obrigou-nos a isto,
então que se apanhe a boleia - não para desenhar um livro cheio de teorias, mas
para conhecermos primeiro a nossa própria teoria. aproveitar para - sem pressa
-, reflectir muito no que já vivemos. no que ainda nos falta. no que queremos
fazer depois, de quem queremos ter por perto depois. e não tem mal em fazer
escolhas. agora é o momento certo para escolher - porque amanhã podemos mudar
de opinião, temos tempo. porque não há pressa. porque nada vai ser já daqui a
pouco.
e esse, é um luxo que eu já não tinha há muitos anos.» josé damião