''Os nossos hábitos e os nossos
rituais têm qualquer coisa de sagrado. E são quase sempre ínfimos, quase
insignificantes. Mas deliciosamente bons de cumprir. Um dos meus hábitos mais
persistentes é muito simples: caminhar. Sempre pelo mesmo caminho. Saio de
casa, desço a calçada até ao rio e sigo sempre junto à água. Uns bons
quilómetros disso. Não o faço por ser saudável. Pelo menos,
não no sentido imediato e canónico do termo. Quem me lê/conhece bem, sabe que
não tenho a mínima paciência para a ditadura light. Essa conversa toda causa-me
um tédio enorme e dá-me sempre vontade de comer mais uma fatia de bolo de
chocolate ou de beber mais um copo de vinho. Além do mais, nunca achei piada a
ditaduras. São sempre tão bem-intencionadas, tão a pensar no nosso bem, tão
higiénicas. Gosto de comida boa sem consciência pesada. Bebo sempre vinho ao
jantar. E não gosto de excessos. Nunca gostei. Em nada. Porque o excesso transforma
o bom em mau. Por isso, não é por regime, nem tem uma utilidade. É porque me
faz bem. Não é só uma coisa de corpo. Está para lá desse visível tangível. O
que acontece é que a ideia de fazermos um caminho é um sinal da nossa
determinação. Ir de um ponto ao outro. E regressar. Enquanto fazemos o caminho,
vamos pensando nas coisas. Respiramo-las ao ritmo dos nossos passos. Não se tem
a sensação de se estar quieto, inerte, passivo. À espera que o mundo aconteça.
Ele está à nossa volta. Nós fazemos parte dele. E isso tem qualquer coisa de
avassalador. Como se cada passo fosse um sentido por si só. E, apesar de não
ser um caminhar deambulatório, dá para reparar tanto nas coisas.'' | mar queirós de araújo |